Ateu, graças a Deus?
Leitores da minha obra tem se
surpreendido com os meus últimos escritos. Alguém que dispõe a desenvolver uma
psicoterapia baseada em Sartre, que se apoia na premissa da liberdade de
autocriação, não poderia estar escrevendo sobre energia ou sobre algo
transcendente ao homem. Embora me apoie em Sartre, nunca me apresentei como ateia.
Nada muda, com ou sem crença em Deus, quanto à responsabilidade que cabe ao
individuo na construção de si mesmo.
Muitos alegam ser espiritual a própria
busca por um sentido na vida, embora outros digam ser isso uma ilusão, pois,
para estes, a vida não teria sentido. Espiritual significa a crença em duas
substâncias radicalmente diversas: - o espírito, cujas características
essenciais são o pensamento e a liberdade, - e a matéria, expressão física da
realidade. Psicologicamente falando, significa que as representações, as
operações intelectuais e os atos volitivos não podem ser explicados totalmente
pelo mecanismo fisiológico. Sua exata explicação exige algo superior. A crença
em um sentido superior na vida seria o que se chama de espiritualidade.
Muitos
psicólogos se veem embaraçados quando vão além do conceito de suprassentido. O
sofrimento e a morte são, para estes, algo que retira o sentido da vida humana.
Porém, a transitoriedade de nossa existência não lhe tira o sentido, mas
constitui nossa responsabilidade, ou seja, depende da forma como nos
conscientizamos das possibilidades essencialmente transitórias. Precisamos decidir
a todo instante qual será o movimento de nossa existência.
Tentando interpretar a mente como simples mecanismo,
alguns psicólogos esboçam os contornos de uma medicina psicológica,
esquecendo-se de fazer uma psicologia humanizada. O ser humano não é uma coisa;
coisas não se determinam. O ser humano se determina a si mesmo. A pessoa humana
cria possibilidades por meio das escolhas que faz e as transforma em
potencialidades, que podem ser concretizadas ou não, dependendo mais das decisões
do que das condições.
E o que dizer quando o sentido por parte da pessoa
tiver sido em vão? A percepção do sentido e o sentido mesmo não se encontram
flutuando no ar; podem ser encontrados no trabalho, no amor e na transcendência
de si mesmo. Cada pessoa é indagada pela vida; à vida ela somente pode
responder sendo responsável. A resposta é a essência da existência humana. Por
esta razão dizemos que o homem vive à procura de um sentido. Construída e
dirigida para algo que não é simplesmente ela própria, a pessoa busca um
sentido a ser realizado. Ser homem necessariamente implica em uma ultrapassagem.
Segundo Jaspers (1966), “O que o homem é
, ele se torna através da causa que ele faz sua própria".
Sartre desenhou um homem absoluto, sem interferência
em suas escolhas. Esta afirmação da independência do homem em seu ser e em seu
agir é o que garante a total liberdade diante do seu destino. Confessa ele que foi o seu orgulho que o fez se dedicar aos fracos
em resposta a opressão dos mais fortes. Não parecia ter lugar para Deus em alguém
que, por orgulho ou defesa, sentia-se mais poderoso. Contudo, a perda da fé em
si mesma já desloca os possíveis laços com a divindade. Um Deus paternal só
viria a aumentar o infantilismo das eleições do homem. Ainda que para ele o Ser
transcendente seja um ser ausente, ele vê neste ser ausente uma abertura para o
infinito, porque o homem não tem mais algo palpável ou sensível ao qual atrelar
a sua individualidade. Entregue à liberdade e ao seu atuar histórico, o homem
se diviniza, ao mesmo tempo em que se torna escravo da própria subjetividade.
Sartre se recusou a admitir um Deus arbitrário que
impedisse a individualidade em constante questionamento no ser humano.
Exaltando o homem e negando o transcendente, não estaria ele reafirmando o Deus
imanente, o que há de divino no homem?
Existem duas
correntes na história da espiritualidade: uma espiritualidade de cima e uma de
baixo, pegando emprestado os termos de Grun e Dufner (2004). A espiritualidade
de baixo foi posta em prática no monarquismo e significa que Deus não nos fala
através da Bíblia ou de igrejas, mas através de nós mesmos, daquilo que nós
pensamos e sentimos, através de nosso corpo, dos nossos sonhos, das feridas e das fraquezas.
A frase de Evagrio Pôntico (1986) demonstra esta posição: “Se queres chegar ao
conhecimento de Deus, trata antes de conhecer-te a ti mesmo.” É preciso descer
às profundezas da própria realidade. Dalai Lama diz: ”espiritualidade é aquilo
que produz, no ser humano, uma mudança interior.” A real mudança é uma
transformação alquímica que promove um novo sentido a vida. Assim, no caminho
de baixo, precisamos descer até a própria realidade para nos elevar. O que nos
abre para uma realidade superior é o exame das nossas fraquezas, das nossas
incapacidades.
A espiritualidade de cima se inicia pela imposição de
ideais. Nasce de um anseio do individuo de tonar-se melhor para chegar mais
perto de Deus. Esse caminho foi adotado na teologia moral, tal como ensinada a
partir da era iluminista. Nela, está presente a idéia de um Deus transcendente,
e para que o indivíduo chegue a Ele, precisa realizar a ascese e a oração,
práticas necessárias de purificação.
Ambos são caminhos abraçados pelo Oriente e Ocidente,
paradigmáticos, diferentes, mas complementares. O Deus Transcendente ou Deus do Universo seria o fundamento de tudo,
mas existe o Deus imanente ou Deus da humanidade, a individualidade da Deidade
e do eu. O Deus transcendente tem dominado o pensamento de milhões de pessoas
no decurso do século. A ideia de um Deus imanente é mais recente, e a humanidade
vai aos poucos despertando para esta expressão ingênita da divindade através
dos seres humanos. Deus pertence aos homens! Um caminho diz respeito à comunhão
pessoal com Deus que inclui o Todo; o outro, o caminho de comunhão com o todo
que inclui Deus. O caminho ocidental, marcado pela experiência judaico-cristã,
é centrado no encontro com Deus que se revela de forma dialogal. Deus se
espelha no universo e está presente em tudo. A busca oriental, no entanto, se faz
através da construção de um caminho que leve a uma experiência de totalidade; uma experiência de não dualidade. Passando
pelos meandros de nossos desejos e pelas profundezas de nossas intenções, um
centro interior é criado funcionando como uma espécie de satélite de toda a
realidade ao redor, refazendo a percepção da totalidade.
A psicologia
moderna vê com bastante ceticismo o caminho de cima, acreditando que ele possa
criar uma divisão interna no homem. O caminho interno é bem mais aceito, pois é
uma verdade defendida que só se pode chegar por meio de um honesto
autoconhecimento. Chegando ao fim de nossas possibilidades, podemos estar
abertos a uma relação com Deus. É como se descrevessem os passos terapêuticos
que o homem precisa dar para chegar ao verdadeiro eu, mas também é um caminho
religioso que, pela experiência de fracasso, conduz a uma relação profunda com
Deus. O caminho oriental está presente em Jung quando diz que a via que leva a Deus
passa pela descida às próprias trevas, levando a pessoa ao inconsciente. A
humildade seria a coragem de olhar a própria sombra. Medard Boss também
concorda em parte com Jung: quando seus pacientes querem chegar à experiência
do divino, precisam antes ter passado pela experiência do sensível.
A palavra
“Deus” tornou-se vazia de significado ao longo de milhares de anos de
utilização imprópria. Trata-se, realmente, de uma palavra difícil de
definir, ou de explicar a realidade por detrás dela. Seria reduzir o invisível
infinito a uma entidade finita, já que a mente pensante apresenta a sua
finitude. Mas alem do desgaste da palavra, existe o desgaste do que algumas
instituições religiosas fizeram Dele. Até entre os que creem, parecem negá-Lo
diante de criticas ou pressões sociais.
E como vejo o homem? Vejo o homem como um criador,
criatura espelho do maior Criador (semelhança), que carrega consigo uma espécie
de tarefa: a de criar-se, desenvolver-se, experienciar-se no mundo, com o
propósito de atingir seu aperfeiçoamento. Independente da crença em algo que o
transcenda, precisa ele se transcender.
É primeiramente na busca interior, no contato com as suas
características máximas, que lhe revelam no silêncio do seu ser, que se
descobre e, a partir dai, vai ao encontro de algo maior. Precisa realizar o que
há de imanente para só então transcender-se.
Ao reconhecermos o homem como criador de sua vida, dizemos que ele é aquele que precisa iniciar o processo. Faz isso por meio de esforço, intenção e propósito. Transcendendo-se criativamente, vai se elevando aos homens comuns, estes próximos dos animais irracionais. Neste ato, percebe que sua liberdade, antes franca, absoluta e individualista, já não é mais a mesma. Dá-se conta de que o “nós” agora é prerrogativa e uma nova consciência aparece. Ser livre é engajar-se; engajar-se já não é ser livre, tal e o paradoxo ético. A liberdade se despe e novamente se veste com nova roupagem. O olhar volta-se para o todo, no qual o individuo é apenas uma parte. É aí que muitos pensam que tudo está programado. Ledo engano! O homem faz o seu destino e ao deparar-se com este novo olhar, suas escolhas visam este todo, fazendo da consciência individual uma consciência grupal. Penso que e a partir dai que o homem entende Deus, pois, não mais preocupado em personificá-lo à sua pequena imagem, entende que Deus é o Todo encontrado no sorriso de uma criança, na dor de uma perda, no perfume das flores, na construção de uma amizade… A palavra Deus parece indicar a reunião de “eus” (deus= de eus).
Ao reconhecermos o homem como criador de sua vida, dizemos que ele é aquele que precisa iniciar o processo. Faz isso por meio de esforço, intenção e propósito. Transcendendo-se criativamente, vai se elevando aos homens comuns, estes próximos dos animais irracionais. Neste ato, percebe que sua liberdade, antes franca, absoluta e individualista, já não é mais a mesma. Dá-se conta de que o “nós” agora é prerrogativa e uma nova consciência aparece. Ser livre é engajar-se; engajar-se já não é ser livre, tal e o paradoxo ético. A liberdade se despe e novamente se veste com nova roupagem. O olhar volta-se para o todo, no qual o individuo é apenas uma parte. É aí que muitos pensam que tudo está programado. Ledo engano! O homem faz o seu destino e ao deparar-se com este novo olhar, suas escolhas visam este todo, fazendo da consciência individual uma consciência grupal. Penso que e a partir dai que o homem entende Deus, pois, não mais preocupado em personificá-lo à sua pequena imagem, entende que Deus é o Todo encontrado no sorriso de uma criança, na dor de uma perda, no perfume das flores, na construção de uma amizade… A palavra Deus parece indicar a reunião de “eus” (deus= de eus).
O homem é o artesão de sua obra mais cara, o si mesmo.
Deus pode dar a vida, energia e inteligência, mas as escolhas serão próprias
deste pequeno deus que vai se formatando (ato de livre arbítrio). Esta é a liberdade que um pai ensina a um
filho e Deus quer ver seus filhos se criando livremente. Marcel (1964) diz: “é
na transparência da minha individualidade e na transparência dos outros que torna
possível o vislumbre de Deus”.
Portanto, não importa se a crença vem de cima ou de
dentro; não importa a forma como cada um escolhe dirigir a sua fé. O que mais
importa é o reconhecimento humilde de que somos partes de um Todo inteligente e
harmônico, que oferece condições para que cada individualidade se forme a sua
maneira e ai realize a divindade em si. Penso que Deus gostaria que nos
iluminássemos para espalhar Luz ao nosso redor (ser luz no mundo). A
consciência grupal seria uma forma de desenvolvermos a compaixão e o amor ao
próximo, pois, afinal, somos todos somos UM!
Tereza Cristina Erthal.
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